De trapaça em trapaça.

          O que parece normal para algumas pessoas, pode ter origem no que é rotina em seu meio social, tendo constantes repetições, não causa reações como espanto, repulsa ou incômodo. Será estranho, se alguém aparecer com a forma que deveria ser normal, haverá inclusive dificuldade de comunicação, em alguns casos, desentendimentos graves, por gerar uma irritação, uma desordem. Hoje, a pessoa que optar por fazer algo sem trapacear, terá muita dificuldade e será considerada tola, vista popularmente como trouxa.

          Sem trapacear, o que seria das pessoas ditas bem-sucedidas? Desde aquela que recebe elogios por sempre conseguir uma boa vaguinha para estacionar seu carro, até aquelas que são veneradas por acumular imensas fortunas, o sucesso simplesmente não existiria sem pequenas, constantes ou grandes trapaças. Entenda trapacear como algo mais sofisticado do que mentir, onde a mentira é apenas parte do método, que precisa de mais elementos para funcionar, incluindo agilidade, prática e saber disfarçar muito bem depois de realizar o objetivo ou parte dele.

          Observe o que de tão comum, não causa mais qualquer reação, as práticas do comércio em geral. Comece do mais banal, como um ambulante que coloca pequenas mercadorias na calçada de uma cidade qualquer. Para vender, vai trapacear inicialmente na escolha do local, depois na forma de atrair compradores, seguindo na troca do que está oferecendo por dinheiro e finalizando no uso deste para qualquer que seja o gasto pessoal. Sem trapacear, sequer poderia colocar as mercadorias na calçada, sequer começaria. Agora observe uma imensa rede de lojas, não importa qual o segmento. Parece tudo normal, na estória contada tudo é encantamento, desde os primeiros esforços ainda em ambiente precário até o merecido sucesso. De tanto repetir sem que alguém barre, cresce e normaliza-se as trapaças, com justificativas tão bem explicadas que acabam sendo incorporadas à prática comercial, virando inspiração para quem esteja começando no ramo. Sabe aquele impostinho que deveria ser pago logo na virada do mês? Pois é, ninguém gosta de pagar impostos, porque não volta em benefícios para a sociedade, sempre tem desvios, então se a imensa rede não pagar, pronto, normalizou a trapaça.

          Agora faça um exercício de imaginação, projetando qual seria a tua reação ao ter que esperar um minutinho para o ambulante que está vendendo qualquer coisa na calçada e que informa estar emitindo a nota da venda, após o teu pagamento pela mercadoria. Continue projetando e tente responder qual seria o resultado no balanço da imensa rede de lojas, para uma conta de matemática básica, onde dez por cento de todas as vendas alimentasse uma coluna e a soma dos pagamentos no banco com guia de recolhimento de impostos, alimentasse outra coluna ao lado da primeira. O que seria dos advogados desta rede de lojas, se o total da primeira coluna, diminuído do total da segunda, resultasse em zero? Não vale trapacear colocando qualquer outro valor na soma, só vale devido em uma coluna, pago em outra. Não há comerciante quem leia o texto até aqui e pense ou fale algo diferente de: se fizer certinho fecha a loja, vai a falência.

          No limite da tolice, de trapaça em trapaça, um dia terminamos todos trapaceados. Qualquer semelhança com a sabedoria atribuída a Ghandi, não terá sido coincidência. Foi entendendo que no olho por olho, terminaríamos todos cegos, que houve algum progresso e naturalmente algumas pessoas perceberam que era melhor não fazer o que poderia te levar a perder os olhos.

          Deixar de trapacear em tudo, de normalizar a trapaça por não conhecer ou não entender como seria feito sem ela, é uma escolha, uma ação individual de grande valor na ruptura de algo que está nos tornando muito mais do que pessoas tolas, estamos tornando a trapaça uma característica da espécie. É necessário e urgente, deixar de considerar que uma pessoa é esperta ou inteligente, por saber trapacear e disso tirar as vantagens que precisa para alcançar algum objetivo. Da cola na prova ao uso de química para ganhar músculos. De desviar recursos a comprar o judiciário, do produto tipo original ao não pagamento das parcelas assumidas em financiamento. Não é inteligente ou esperta a pessoa que aparenta bem-sucedida, se usar deste perfil de ações, é nada mais do que trapaceira, deve ser anulada ao invés de exaltada. Assim como não pode ser estranha ou trouxa, a pessoa que estuda e responde na prova o que aprendeu, que se exercita e exibe a virtuosa genética, a que acumula bens ou dinheiro lentamente, de forma verdadeiramente honesta, não pode ser considerada trouxa a pessoa que sinaliza o que realmente existe no produto a venda. Não pode mais ser exceção, a pessoa que usar de bens luxuosos totalmente pagos e com dinheiro limpo, também não pode mais ser estranha a pessoa que comprova ser bem-sucedida sem qualquer contato ou agradinho a juízes, promotores, desembargadores e afins. Estas pessoas que hoje encontram dificuldades para comunicar e praticar o que fazem sem trapacear, não são tolas, devem ser a referência para todas as outras.

          Quando assistimos a um chefe de estado, vendendo a imagem de exímio jogador de golfe, como uma de suas incontáveis virtudes que o diferenciam dos outros apontados como trouxas, mas, câmeras flagram alguém da equipe deste, “semeando” uma bolinha a centímetros de um dos buracos do jogo. Não há o que possa sinalizar mais nitidamente que o limite da tolice foi alcançado, do que quando com imagens reais, vemos a comprovação que de trapaça em trapaça, um dia acabamos todos trapaceados. Observe quantos aplausos, quantas pessoas veneram e se inspiram no bem-sucedido, que por muito tempo conseguiu trapacear, até mesmo em um jogo, para vender uma aparência falsa, desonesta. É o limite da tolice.