Tem Que Ter

            Tem que ter, é uma frase que ajuda a revelar o quanto a pessoa absorveu dos estudos no ensino fundamental. Se não houver a letra r ao final da última palavra, sabe-se muito sobre quem está falando ou escrevendo. A questão involutiva no uso da língua portuguesa no Brasil é mais delicada, não soa bem falar com exatidão o que se pensa da pessoa que não usa plural, concordância ou a simples grafia, a pronúncia de verbos minimamente próximo a regra. Foi uma observação extra, apesar de o assunto deste texto ter relação com o erre.

            Tem que ter um pet. Tipo cães e gatos ou “exótico”, tipo cobras, ratos, répteis diversos, macacos ou aranhas. Tem que ter mesmo que seja com crueldade, tipo aprisionar um pássaro, de qualquer porte em gaiolas. O que realmente importa, é que tem que ter um pet. Assim como, tem que ter resposta pronta para “pessoas chatas e deprimidas” que fazem a pergunta: em quais condições ambientais este pet viverá? Chato. Muito chato ter que pensar antes em estrutura física adequada. É melhor ter um cachorrinho em uma kitnet do que viver só. Porquice, fedor, insetos, não importa, tem que ter um pet. O bichinho vai latir e os vizinhos que parem de encher o saco. Vai miar e fazer folia, mas, dane-se. Quando envelhecer, dá-se um jeito. Tem que ter.

            Tem que ter carro. Tem que ter música no carro. Tem que ter um som tocando, não importa se quem está junto preferia conversar, tem que entrar no carro e já ligar o som. Tem que ter. Quem não tem é desprezível, em alguns lugares, quem chega sem um carro tem outro tratamento. Carro é sinal de que a pessoa tem alguma coisa. Tem que ter.

            Tem que ter hamburger. Nem que seja uma ou duas vezes por semana. Tem que ter muito catchup e mostarda. O pão tem que ter gergelim em cima. Tem que ter maionese e batatinha frita também. Tem que ter refrigerante. Tem que ter. Quando o assunto é comida, tem que ter vai ser falado quase sempre.

            Tem que ter barba. Que horror homem sem barba, parece criança. Tem que ter manutenção da barba na barbearia. Tem que ter os produtos específicos para barba, tem que ter aquele que deixa mais escura, tem que ter.

           Tem que ter academia. Tem que ter suplementos para melhorar o treino e potencializar os resultados. Tem que ter granola. Tem que ter a roupa adequada, tem que ter o tênis indicado, tem que ter plano anual, senão desiste facilmente. Tem que ter som alto na academia, tem que ter músicas “animadas”, tem que ter as palavras de motivação. Não venha com desculpa que não dá tempo, tem que ter.

           Tem que ter o grupo de corrida de rua ou de bikers. Tem que ter o uniforme do grupo. Tem que ter regras. Tem que ter hierarquia. Tem que ter os equipamentos adequados, tem que ter o registro do percurso, tempo, velocidade. Tem que ter. Se for caminhar, correr ou andar de bike fora de grupos, lembre-se que tem que ter fone de ouvido. Tem que ter.

           Tem que ter uma religião. Tem que ter comprometimento com as regras e dogmas. Tem que ter participação no que a congregação ou a comunidade promove. Tem que ter doação para a religião. Tem que ter a presença física nos locais onde a comunidade se reúne. Tem que ter a grandeza da renúncia ao que não é da religião. Tem que ter as mesmas falas do líder, tem que ter fidelidade ao rito, tem que ter os livros, os cursos. Tem que ter.

           Tem que ter redes sociais. Tem que ter participação ativa, comentar, compartilhar, postar. Tem que ter. Quando houver versão paga, tem que ter. Tem que ter um streaming e tem que ter muitos seguidores. Tem que ter relevância na rede. Tem que ter.

           Todos os tem que ter que estão na tua vida agora, percebidos ou inconscientes, estão vinculados a uma regra que nem passa na cabeça de quem já aderiu a um tem que ter. A recorrência. Unanimidade na informal escola dos negócios, business. Também é uma busca de muitos trabalhadores, de operários e funcionários públicos, mesmo que não seja com este nome, há busca por ter e manter a recorrência em recebimento de dinheiro. Este é o verdadeiro tem que ter que está na base de todos os outros tem que ter, principalmente os citados nos primeiros parágrafos.

           Peço mais uma vez perdão aos deuses e deusas da explicação, que detestam afirmações diretas e simples. Com a devida vênia, colocarei a recorrência como a principal fonte de alimentação do sistema econômico atual. Em micro, mini, média e macro escala social, a recorrência vem induzindo pessoas de todas as camadas a consumir aquilo que vem completando a frase tem que ter.

          O pet não tem nada a ver com a necessidade humana de ter companhia, muitos deles sequer interagem e pela abastração criada com o tem que ter, acabam sendo promovidos a seres racionais, que falam a mesma língua dos donos (tutor é piada), compartilham dos mesmos hábitos e expressam, na cabeça maluca, sentimentos iguais aos humanos. Tem a ver sim com a recorrência. Com o passar do tempo, após a raça humana ter grande parte dos seus em cidades urbanizadas, após a rotina industrial e do trabalho (recorrente), após a evolução dos hábitos de higiene e outras mudanças importantes que nos diferem dos antigos reis e rainhas em palácios, certamente o tem que ter um pet não funcionaria. Existe e está em alta, somente pela recorrência que gera. Por exemplo, o banho do pet dura no máximo três ou quatro dias e em média tem que ter uma visita semanal ao pet shop. Que tal um plano mensal onde o valor do banho fica mais atrativo? Tem que ter o banho, então já faz o plano. Lembre-se das vacinas, do antiparasitas, do vermífugo e claro, a principal recorrência desta conversinha de pet: a ração.

          Lógica semelhante é a dos carros. Tem que ter para gerar muitas recorrências. A do financiamento, as famosas parcelas, não são mais a recorrência preferida de quem explora o tem que ter um carro. Manutenções programadas, peças com recorrência de troca como filtros, lubrificantes e o que vai movimentar os motores, seja combustível ou eletricidade. Não podemos relaxar com os pneus. Tem que ter.

          A recorrência transformou saúde e educação em puro negócio, business. Mudou a forma de pensar na segurança, transformou tolices em necessidades incontestáveis, grandes bobagens em sensação de que são vitais. Em escala micro, tornou-se desejo de motoristas de taxi ou aplicativos de transporte: ter alguém com pagamentos mensais fixos. Recorrência. Se não existir ou tiver seu ciclo encerrado, a pessoa de negócios deve com urgência criar. O chamado mercado, quando percebe o fim de uma recorrência, cria outra imediatamente.

          Praticando a tolice de tentar prever o futuro, com a palavra “projetando”, para ficar com ares de algo refinado, intelectual, percebo que a prática constante da recorrência será a fonte da sua própria ruína. Como acontece com parasitas que de tanto disputar a mesma fonte de sustentação, esgotam a fonte e acabam morrendo. Projetando em médio prazo, a fonte de sustentação das recorrências atuais, entrará em colapso por ser dependente também de uma recorrência. Para pagar em forma de recorrência, será necessário receber da mesma forma. E isso vem apresentando sinais de dias contados. Não pela superação da tolice, pelo despertar aos perceber que o tem que ter é uma armadilha. Será pela pouca atratividade por fonte de recebimento. Ao que parece e sendo pura projeção (não confundir com exatidão), está mais atrativo ganhar uma quantia maior de uma vez e administrá-la, do que receber migalhas recorrentes.

          O tem que ter pode fazer parte da tua vida, não há um antidoto a esse veneno que seja conhecido e funcione em todos os casos. A sabedoria, a visão ampla e profunda, o desconfiar e a cautela, podem ser ferramentas poderosas para usar como antitolice. Sim, o tem que ter é uma tolice. A recorrência é o que te incluirá no grupo de pessoas tolas, permanente ou temporariamente. Ela tem tudo a ver com o erre. Sim, tem que ter erre na palavra ter, escrita ou falada. E não é a letra e sim a flexão do verbo errar, o que a recorrência mais espera de ti, erre.