Na ficção, uma das belas artes é criar personagens, descrevendo o que passou na vida até o momento atual, com curiosidades, momentos heroicos e emocionantes. A intenção é dar coerência ou base para estórias. No universo real, passamos a conviver com o uso desta arte, mas, sem nenhum pudor, agora chamamos de biografia.
Precoces, publicadas com a pessoa ainda em vida, muitas ainda jovens e sem relevância para além do próprio ego. Não raro, estas indevidamente chamadas de biografias, nitidamente são encomendadas pela pessoa biografada, por motivos e propósitos diversos. Seria uma tolice questionar o uso do dinheiro, é uma escolha pessoal e livre. O que estamos perdendo, que é relevante nestes casos, é a credibilidade do formato.
Ser inspiração, quem sabe virar um exemplo a ser seguido, também é um business muito interessante. Por isso um livro ou vídeo intitulado como biografia, é ferramenta indispensável a quem deseja participar desta farra. Não teria risco ou prejuízo para sociedade, se um detalhe dos tempos atuais não estivesse atuando intensamente. O espaço enorme deixado pela falta de líderes inquestionáveis ou que ao menos tenham na biografia real, verdadeira, o legado positivo. Faça neste momento uma busca na memória de três nomes com biografia verdadeira e legado que será perene, além de influenciar positivamente o agora.
Tudo bem criar estórias e colar o resultado em uma pessoa real. Acredita quem quiser e sustenta em forma parecida com dogma, quem tiver disposição para tal tolice. Como sequência dos riscos e prejuízos para o convívio social, pessoas que defendem as falsas biografias como verdadeiras, potencializam o chamado efeito manada, a viralização.
Formada a idolatria, pura tolice, não se desfaz o ilusionismo sem traumas. É diferente de romper o lúdico, onde por exemplo, deixar de acreditar no Papai Noel, abre a mente para entender a importante distinção entre estória e história. Na primeira pode tudo, até o absurdo e o desconexo, este sendo muitas vezes necessário para criar a magia, a emoção. A segunda virou bagunça. Quem estava presente nos momentos descritos como se fossem reais, muitas vezes cai na gargalhada e outras se revolta, pela falsidade e distorção.
Por exemplo, um ídolo que ficou muito rico, “autoriza” a publicação de sua biografia. Nela consta o registro que fez “o primeiro business” aos 12 anos. Tem que ter algo assim, é indispensável ao contexto ter uma aura de genialidade precoce. Logo adiante, na juventude, está descrito que o ídolo fez trabalhos braçais ou aqueles que parecem humilhantes, como fritar hamburgueres em fastfood, trabalhar em colheita agrícola ou equivalentes. Faz parte da técnica para valorizar o herói, criar a impressão de que foi sofrido, houve sacrifícios, principalmente se for para pagar estudos. Humildade e superação do sofrimento, são essenciais para cativar. Até lobos se passam por cordeiros, para colocar aqui também alguma metáfora conhecida.
Idolatria formada e o escritor ou editor não se incomoda com a incoerência, deixando no texto da falsa biografia o contraditório, o detalhezinho que entrega a frágil estrutura da estorinha. No exemplo anterior, logo no início da biografia está descrito que o ídolo tem origem em uma família rica. Lá se vai a emocionante passagem em que fritou hamburgers ou trabalhou na construção civil. Nem precisava, afinal com o que se sabe que é a renda possível nestes trabalhos em curto prazo, falseado fica o pagamento de uma universidade. A quem aceitou o conto, tolice. A quem escreveu, editou, publicou ou criou essa fantasia, o importante é que seja fofa.
E quando a pessoa idolatrada tem muito, muito dinheiro, muda alguma coisa? É óbvio que sim. Pode “apagar” a verdade e colocar a fofura no lugar. Sem dificuldade e contando com testemunhas para afirmar que a estorinha é real, transformando o registro anterior em boatos, coisas que inventaram e não podem provar. Jamais uma biografia fofa terá a parte podre registrada, no máximo alguns deslizes irrelevantes. Contrabando, golpes, sonegação, exploração de pessoas, roubo de ideias, tudo que fez parte da verdadeira construção da história da pessoa biografada, será apagado ou “não autorizado”. E quem agora questionar a nova verdadeira trajetória inspiradora, terá que enfrentar a fúria de uma legião de fans.
Biografia fofa é sedução para ganhar algo com a tua tolice ao acreditar nela.
