Guerradesenvolvimentistas

               Diga-me com quem andas e eu te direi quem tu és. É uma boa forma de identificar quem te influencia, quem te inspira e talvez até responda o porquê das tuas palavras em um momento, tão focadas em uma tolice. Raramente a frase será lembrada quando há virtudes nas tuas ações e sabedoria nas tuas palavras. Quando há uma decepção ou sinal de retrocesso, quando surge a defesa de algo que não é o esperado, considerando a formação da pessoa cooptada por uma bobagem, existe sim uma desconfiança de que esteja sendo mal influenciada, que houve um aproveitamento da fragilidade momentânea, para instalar uma desinteligência.

               Guerradesenvolvimentistas. Não sei se esta palavra já existe. Também não sei em qual momento foi criada a palavra terraplanistas e todas as outras “istas” conhecidas. Estou utilizando estas vinte e cinco letras como referência ao movimento que percebo, onde uma linha de pensamento uniu pessoas em torno da ideia de guerras fomentando desenvolvimento. Obviamente não é novidade que uma tolice lançada à toa, seja transformada em ideia viral e conquiste a simpatia de incontáveis pessoas. Logo em seguida, surge argumentações, defensores irredutíveis, um famoso ou famosa entra na onda e a bobagem se torna descontroladamente enraizada. Por mais tosca que seja a lógica, por mais frágeis que sejam os argumentos, por mais que sejam refutadas as proposições, não adianta, mentes sequestradas e sem negociação de resgate que permita recuperar todas as que se tornaram reféns.

               A guerra como fator de desenvolvimento. Ao ouvir isso, fiquei maravilhado com a quantidade de perguntas relacionadas que refutam a ideia, e, sem viés, podem submeter o tema ao falsear de suas bases. Novamente é necessário lembrar que não é algo novo, tal argumento já motivou guerras tolas em outras fases da história. A diferença é a disponibilidade de informações, dados e fatos que permitem a pessoas comuns, ter acesso a farto material para formar a própria conclusão. Sei que o tempo é um fator limitante, por isso tenho receio de que a tolice supere a sabedoria por um período maior que o aceitável.

               Há um país em guerra permanente desde 1941, considerado pelo lado ocidental do mundo, como o exemplo de desenvolvimento e que mexe com o imaginário e paixões de uma soma considerável de pessoas. Será esta a primeira base para sustentar as ideias dos guerradesenvolvimentistas? Desta pergunta, as derivadas abrem correlações com temas sensíveis, áreas do conhecimento como a filosofia, psicologia, matemática básica, física, sociologia e tantas outas. Não tenho formação e habilitação para propor algo a luz destas fontes de sabedoria, então, vou com a percepção de uma pessoa comum, que por sinal não quer guerra com ninguém.

               Desenvolvimento em quê? Esta é a minha principal pergunta, com origem na proposta de guerra como fator de desenvolvimento, sustentada pelo status alcançado pelo país que está em guerra permanente. Despertar e desenvolver conhecimento através das demandas de guerra? Investir em pesquisas e experimentos científicos por estar em guerra? Desenvolver produtividade a partir do conhecimento e tecnologias gerados na guerra? Tenho receio que algumas das soluções que utilizamos com frequência na vida digital, sejam argumentos de quem se tornou guerradesenvolvimentista, pela origem militar destas coisas. Smartphone, GPS, computadores pessoais, carros, aviões, satélites, também estratégias, equipamentos de comunicação, espionagem, domínio da pólvora, entre tantos outros. Aumenta minha dúvida se estas coisas seriam desenvolvidos da mesma forma, a partir da vontade do ser humano em superar os limites conhecidos, sem relação com guerras? É fácil ouvir um guerradesenvolvimentista falando algo parecido com: “se não fosse pelo uso militar, não haveria internet” ou ainda “primeiro foi desenvolvido o GPS para uso militar, depois liberado para nós”.

               Comparar-se a si mesmo e não com o vizinho. Ser uma versão melhorada do que foi antes. Evoluir tendo como referência a si mesmo. Também gera desenvolvimento? Se a tua resposta é não, temos um “estado de atenção”, com evidências do contato com o vírus guerradesenvolvimentista. Estando em paz e feliz, serás uma versão tua melhorada constantemente. Como? Desenvolvendo novas habilidades naturalmente. Não importa se o teu vizinho cortou a grama hoje e colocou duas mudas de plantas já florescidas. O teu jardim está ao tempo natural crescendo a grama e as plantas que semeastes. É um jardim mais belo do que estava ontem? Esta é uma relevante motivação, comparar o teu jardim com ele mesmo. Sem comparar com o do vizinho, pode sim ser melhorado. Pela guerra de egos? Não. Pela superação e a recompensa que ela gera. Não precisa ter um inimigo como alvo, nem estar em uma guerra.

               Quem precisa de um inimigo para se desenvolver? A filosofia tem respostas relevantes, a psicologia também. Os guerradesenvolvimentistas não conseguem imaginar a vida sem inimigos, se não houver um, a eles, deve ser criado imediatamente. É impossível saber se a partir dos filósofos houve experimentos suficientes, projetando as consequências de bilhões de pessoas usando a referência de um “inimigo” para motivar desenvolvimento. Mas, é possível perceber que há fatos desagradáveis gerados pelos conflitos, muitos deles por tolices, resultando em tragédias irreparáveis, mesmo que tenham desenvolvido algo a partir dos eventos.

               Para ficar em uma só questão, mesmo sabendo que a parte emocional dos guerradesenvolvimentistas será superior a racional, pelo vínculo afetivo com as ideias e o imaginário que o local desperta neles, vou propor um raciocínio breve com o país EUA. Se considerarmos números como parâmetros para validar desenvolvimento, podemos espiar outros dois países? Que tal Canadá e Luxemburgo? Os três (EUA, Canadá e Luxemburgo), pelo critério dos números, são países ricos e desenvolvidos. Creio que até mesmo terraplanistas aceitam esta afirmação. O mais rico dos três, em 2024, considerando riqueza “per capta”, é o menor, Luxemburgo. Considerando o número Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), Luxemburgo é 0,93, acima do 0,929 do Canadá e do 0,926 dos EUA. Os números são cruéis para os delirantes, mas, não mentem, são como o retrato de um momento. Outros índices ou estatísticas que sejam comparados, vão colocar Canadá e Luxemburgo, em igual condição de desenvolvidos, proporcionando igual classificação quanto ao EUA. Não quero comparar batatinha com laranja, mas, posso afirmar que os três países citados são desenvolvidos, assim como posso afirmar que o tubérculo e o fruto são alimentos. Isso acredito que até um antivax concordará. Qual guerra desenvolveu Luxemburgo e Canadá? Ou então, qual inimigo motivou o desenvolvimento destes dois países?

               Há outros argumentos que deveriam deixar os guerradesenvolvimentistas no mínimo envergonhados. Por exemplo, ao considerar que o primeiro ministro indiando “alfinetou” os vizinhos paquistaneses, em sua fala ao comemorar o sucesso de uma missão espacial, o diabinho do viés “cutuca” um sem número de pessoas e diz: “tá vendo, se não tivesse um inimigo, uma guerra com o Paquistão, a Índia não teria se motivado a desenvolver um programa espacial bem sucedido”. Mas, um anjinho estava ao mesmo tempo cutucando e tentando lembrar os guerradesenvolvimentistas, que tudo pode ter começado com outro movimento, aquele que trouxe motivação para a liberdade e tem inspiração no oposto a disposição bélica, com liderança de um ser humano bem desenvolvido: Gandhi.

               Guerra desenvolve a morte. É outro argumento que não deve ser agradável aos guerradesenvolvimentistas. Desenvolver um equipamento, uma tecnologia ou conhecimento, a partir da morte, não parece ser uma vitória da inteligência humana. Há sinais claros de que poderíamos ter desenvolvido a tecnologia do GPS para usá-lo em um aparelho portátil, simplesmente por desejar encontrar um endereço, ao invés de desenvolvê-lo para encontrar o local onde está um inimigo e matá-lo com um foguete guiado remotamente. Um destes sinais é o desenvolvimento de uma forma de potencializar a capacidade de observação do olho humano, através do aperfeiçoamento de lentes em tubos, que apontados para o céu trouxeram uma revolução tecnológica relevante. Sem qualquer motivação militar ou para uso em guerra.

               A inteligência humana desenvolveu o avião e o brasileiro envolvido na história, tinha uma motivação: voar. Há quem diga que o maior desgosto do inventor, foi ver o uso da tecnologia que ele desenvolveu sendo usado como arma de guerra. Física, mecânica, aerodinâmica e todos os outros conhecimentos aplicados, motivados pelo sonho de voar, em paz. O Chineque de Joinville, surgiu sem qualquer demanda gerada por uma guerra ou motivada por superar inimigos. Foi o desejo de ver uma pessoa feliz que motivou uma outra pessoa a misturar os ingredientes e desenvolver esta maravilha. É possível a um guerradesenvolvimentista imaginar a sensação de felicidade e paz entre quem desenvolveu o Chineque e quem foi presenteado com a aplicação da inteligência? A guerra não desenvolveu o chocolate, nem foi a partir de uma que se percebeu a tecnologia envolvida no semear e colher nossos alimentos. Doce de leite de Viçosa, não tem relação com a tecnologia da guerra. O churrasco não tem origem militar ou na guerra, nem a batata frita. Do refrigerante ao colchão, do plantio de raízes ao bolo de aniversário, do banho quente ao sorriso de uma criança, nada do que nos faz vivos e felizes se desenvolveu com guerras.

               A tolice do guerradesenvolvimentista é fruto próximo do mesmo formato de encantamento de trouxas que gerou terraplanistas, antivax, n4zis7as e outras falhas da inteligência humana. Tão perigoso e inútil quanto. Encontra o mesmo solo fértil – metáfora a forma como se espalha – se comparado a uma maravilhosa plantação de frutas com tecnologia avançada. A principal diferença é que sorrimos e nos alegramos ao comer frutas, ao passo que desenvolver-se a partir de guerras não paga o custo amargo da morte. Em paz, é possível comer um Chineque de Joinville e a sensação gerada é indescritível, aquela doce farofinha crocante, desenvolvida por alguém sem usar motivação por alguma guerra. Por outro lado, digitar “Joinville” em um navegador GPS, não faz o menor sentido para quem estiver no alvo de um míssil, uma bomba, um projétil, uma arma química, um disparo de lazer mortal ou qualquer outra tecnologia “maravilhosa” de guerra. O Doce de Leite de Viçosa, fonte de felicidade, faz maior sentido do ponto de vista da inteligência, do que aplicar a física e a química para desenvolver uma arma de destruição em massa.

               Caso quem tenha afinidade com o pensamento guerradesenvolvimentista, ainda não sinta vergonha, convido a fazer uma escolha rápida a partir da observação histórica que temos disponível. Pensamentos e atitudes pacíficas, desenvolveram e registraram a biografia de Gandhi. Em igual período histórico, pensamentos e atitudes de guerra, desenvolveram e registraram a biografia do inominável hi7l3r. Em qual persona citada a humanidade reconhece como inspiração? Qual dos dois proporcionou com suas atitudes e ações, melhor resultado para a inspirar a humanidade? O que vem a tua cabeça ao lembrar de um e do outro?

               Ainda assim, guerradesenvolvimentista, tu acreditas no que estás propagando? Os frutos gerados por pessoas felizes e em paz, são muito relevantes e necessários. Através da guerra, o que é gerado é uma falsa evolução, paga com vidas e roubando recursos que certamente atrasam o desenvolvimento humano. É falso o argumento da guerra como fator de desenvolvimento? Que um sopro de paz e felicidade, alimente e fortaleça a tua resposta.

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