Disfarça e Continua.

               Não sabemos como eliminar a desigualdade. Sabemos como reduzir. Assunto chato para um extremo, urgente para o outro e fora de foco para quem está neste momento em busca de aceitação, pertencimento, alcançar o que parece ser muito bom. De forma irônica, o grupo com maior número de pessoas, sob o maior impacto do problema, não sabe do que se trata. Nem tudo está perdido, já é perceptível o aumento no número daqueles que percebem que estão alimentando um sistema ruim, que na prática é semelhante aos anteriores, mesmo que distantes milênios de hoje. Os ciclos de poder se repetem, as divisões sociais também, classificados com palavras diferentes que apesar dos disfarces, o significado delas é o mesmo. Parece enrolado? Sim, e é.

               Quanto mais enrolado para entrar no assunto, explicar, argumentar, melhor para quem está no extremo superior de acesso a riqueza e poder. A confirmação deste ponto vem da quantidade de estudos, debates, livros, agora também entrevistas, vídeos e opiniões, com o tema exato ou relacionado a desigualdade. Seres humanos, sem trapacear, jamais terão capacidade física para acessar, ler, ouvir e entender o que está disponível, publicado. Como exemplo, partindo apenas de dois dos mais importantes e mais citados autores, Karl Marx e Adam Smith; o tempo necessário para acessar a obra deles, estudar e entender, já exclui muitas pessoas do grupo habilitado a falar sobre o assunto. Especialmente as ocupadas das 8:00 às 18:00 horas, de segunda a sexta, em atividade profissional obrigatória (trabalho). Como o ser humano não tem a capacidade natural para realizar esta tarefa, toda produção como linhas de pesquisa ou interpretações, não diretamente realizadas pelos dois autores citados, será simplesmente um desperdício de papel ou bytes. E aqui entra o interesse implícito da camada social superior, de que os abaixo deles não tenham condições de conhecer a fundo as bases teóricas e práticas do sistema construídos por um grupo aparentemente indissolúvel. Sendo assim, os que não conseguem alcançar este grupo, a casta superior, não chegam a incomodar ou criar problemas graves, por consequência se mantém controlado o risco de rompimento, revoluções ou insurgência. Continua enrolado? Sim.

               Sempre será um assunto enrolado, por ter feridas abertas, dogmas, comparativos toscos e muito mais conteúdo de apelo emocional do que racional. Quando ouço algo parecido com: “temos milhares de exemplos de sucesso, a pessoa tal que começou do zero, sem nada de recursos e fez fortuna”. Logo em seguida, lembro de no mesmo período, para bilhões de pessoas, sequer a oportunidade se apresentou, nem mesmo foi possível pensar em fazer igual, inspirar-se em estórias midiáticas e tentar alcançar a turma poderosa. Por isso afirmo que não sabemos como eliminar a desigualdade social. Com a mesma receita (fórmula) aplicada para duas pessoas diferentes, não é garantido o mesmo resultado. Assim, seguimos com as mesmas divisões sociais por milênios.

               Quando olhamos a história sem viés, sem paixões, podemos perceber que nos sistemas sociais anteriores ao atual, mesmo que em territórios e povos diferentes, a ruptura ocorreu de forma semelhante. Ao dilatar a distância entre as camadas sociais, ao ter desigualdade abismal entre o topo e o fundo, qualquer período histórico observado registra revoltas, rompimentos e até guerras onde o fundo cansou de alimentar o topo. Escrevo este texto em 2024 e em grandes cidades, por mais que alguns queiram negar, ocorre um fenômeno social que sinaliza o cansaço da classe ao fundo. Algumas pessoas estão deixando de valorizar o status de empregado, partindo para pequenos negócios ou trabalhos autônomos, considerando que não faz sentido alimentar o “patrão” em troca de migalhas (salário) que jamais proporcionarão os mesmos acessos a bens, produtos de consumo e lugares que a classe do topo tem com facilidade. Começa a ficar mais difícil para o “patrão” encontrar empregados que aceitem o trabalho tradicional. Observa-se também, que em casos frequentes, o ganho nos pequenos negócios ou trabalhos autônomos, é menor do que o salário recebido antes do rompimento, porém, a forma de viver e usar o tempo em benefício próprio, justifica o feito, com argumentos fortes. Continua existindo a desigualdade, é fato, mas, sinaliza o início do rompimento, semelhante ao que fez ruir impérios, feudos, reinos, nações e todos os formatos onde o poder e a riqueza estavam concentrados em grupos pequenos, alimentados pelo trabalho de “súditos”. Este trabalho gerador da riqueza, sempre esteve a cargo de um grupo enorme e induzido a acreditar que é normal alimentar a fortuna e poder do “patrão”.

               Sem muito esforço intelectual, é possível perceber que atingimos desigualdade em escala intolerável. Com algumas excentricidades que com toda certeza serão alvo de estudos e observações de historiadores, passado o tempo que permita análise do nosso período atual. Um exemplo fácil: a pessoa considerada como a mais rica do mundo, com a maior fortuna individual, não é a mais poderosa, nem mesmo pode utilizar o dinheiro para conquistar respeito e ser unanimidade com biografia inquestionável. Para alguns é um semideus, para outros é motivo de piadas e muitos sequer ouviram falar dele. Além de não ter uma explicação, este exemplo abre outras perguntas relacionadas ao mesmo tema. A soma da fortuna conhecida de uma pessoa, não sendo totalmente tangível, serve a qual propósito? A distância entre a fortuna da pessoa mais rica do mundo atual e o acumulado por um empregado dele em décadas de serviços prestados, é de justa existência?

               Sair deste assunto sem aumentar as dúvidas que o tornam enrolado, é impossível. A única certeza que proponho é que sem desigualdade social não existe capitalismo. Calma, não sou comunista e não estou desejando o fim do capitalismo. Neste momento da história, não temos sequer uma alternativa real que seja agradável, que tenha boa aceitação e viabilidade para substituir o atual sistema. Ele terá o mesmo destino dos sistemas anteriores e os sinais de que está em colapso, são mais do que evidentes e óbvios. E a desigualdade pós capitalismo? Continuará existindo. Tem sido assim desde sempre. Muda o nome, passa um perfume, enfeita a descrição e repete a história, com alguns ajustes para não expor toda a verdade. Depois de algum tempo, a numerosa parte da sociedade que está no fundo se rebela contra o topo e surge um novo período, com cenário diferente para o mesmo teatro.

               Desigualdade só importa quando eventualmente alguém que acreditava estar no topo, de repente percebe que faz parte do fundo e começa a organizar uma revolta geral. Sem isso, é administrada tranquilamente, sem risco de extinção. Reduzir é possível, mas, até hoje, não se sabe como fazer para eliminar.

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