Agente Sua, o tempo todo, com elegância e tranquilidade, estava aguardando o contato do comando central. A única coisa que incomodava, era lembrar que a outra parte da dupla, provavelmente estaria fazendo alguma bobagem.
— Entendemos a preocupação, está registrado em nosso sistema e ficará entre os assuntos em análise (popular pastinha “tem que ver isso daí…”). Agente Sua, vou passar as instruções e descrever a próxima missão a ser executada por vocês. Identificamos muita frequência de pessoas falando a palavra: “distrocá”. Não há registros sobre onde surgiu, também não temos registros do que significa. Nossa preocupação entrou em nível de alerta máximo ao perceber que o uso desta palavra é frequente, até mesmo em pessoas que consideramos de nível superior, por exemplo professores e professoras. Ao ouvir em falas de comunicadores de grande alcance em mídias diversas, percebemos que é a hora de identificar a origem, o que significa e por que as pessoas estão usando essa palavra. O prazo para entregar o relatório é sete dias. Agência de inteligência desconectando em três segundos.
Logo em seguida, Agente Sua no calor que parecia sufocar a cidade, em um dia muito abafado daquele verão, pensava em estratégias enquanto caminhava pelas ruas centrais, com grande fluxo de pessoas em seus mais diversos interesses. “Distrocá, só de pensar na palavra, sinto desgosto, tem cheiro de coisa tosca. Faz lembrar que existe Agente Soa.” Depois de algumas horas, em uma agradável sala no local base de trabalho, escreveu o planejamento, acionou a outra parte da dupla.
— Estou ouvindo sim, como está meu jeito de falar agora?
— Agente Soa, alto, ainda muito alto. Mas, sigamos, temos pouco tempo e muito o que fazer. Nossa agência precisa entender sobre a palavra “distrocá”. Como surgiu, o que significa e por que está sendo falada também por pessoas consideradas de alto nível.
— Ah sim, sim, tá ok.
— Agente Soa… Ouço muitas vozes, onde tu estás?
— Eu? Ãããã Olha só, que safadeza!
— Agente Soa, onde tu estás?
— Ah sim, estou aqui na praça, ãããã, tem um gato muito inteligente, ele acerta toda vez!! O cara coloca três copos e um deles com uma bolinha embaixo, ãããã, ele mexe, mexe, troca de posição e pede para o gato adivinhar onde está a bolinha! E o bichinho acerta!! É sensacional!
— Agente Soa, não é certo… não é adequado… enfim. Vamos falar pessoalmente, em frente a joalheria da oitava galeria, em dez minutos.
Agente Sua mesmo sabendo que o dia estava quente e abafado, sugeriu o local de encontro por lembrar que havia um espaço para café em frente a joalheria, com mesinhas ao fundo e ambiente propício para uma conversa de trabalho. Fez a escolha por perceber que não seria fácil a comunicação com Agente Soa.
— Ei, olá, que bom te ver! Já vou avisando que não tenho dinheiro para comprar joias heim! Ainda mais desta loja chique!
— Agente Soa, menos escândalo por favor, lembre-se da discrição, não vamos comprar joias, vamos aqui em frente, no café.
— Eita, nunca tinha reparado antes, ãããã, tem um café aqui! Mas, achei que eu ia ganhar um presente da agência, imaginei que o encontro em uma joalheria era para isso. Não foi desta vez né Agente Sua?
— Sobre presentes temos orientações claras nos manuais Agente Soa. É uma questão certa nas provas de seleção, parece estranho que tu não tenhas entendido. Mas, esta não é uma preocupação para agora, temos sete dias para entregar o relatório da missão.
— Qual missão?
— Agente Soa, falei a missão em nosso contato anterior.
— Sim, sei, foi. É… ãããã… Não lembro exatamente. É possível refrescar minha memória? Sabe como é, muitas tarefas, ãããã, a cabeça ó, uma loucura, correria total.
Agente Sua começando a sentir desconforto e irritação, optou por manter a elegância e o controle, mesmo sabendo que teria mais dores nos ouvidos com Agente Soa.
— Que bobagem! Pensei que teríamos missões tipo de filmes, ãããã, como agentes secretos combatendo vilões, para defender a nossa pátria. Preocupação com uma palavra? Que besta!
— Agente Soa devo lembrar que na prova de seleção também havia uma questão sobre as missões, não nos cabe contrariar ou criticar, apenas executar. Somos da agência de inteligência e as palavras estão relacionadas sim com a nossa existência.
— Tá. Entendi. É que “distrocá” é simples demais.
— Como assim? O que tu sabes sobre “distrocá”?
— Simples, toda loja tem que “distrocá”. Todo mundo faz isso.
— Agente Soa, não estou entendendo. Loja? O que uma loja tem a ver com “distrocá”?
— Eita. Vamos a uma loja qualquer, pode ser ali na joalheria, vou te mostrar como funciona. Sou melhor mostrando do que tentando explicar.
A poucos passos de onde estavam, Agente Sua e Agente Soa entraram na joalheria, com rápida abordagem de uma belíssima atendente.
— Boa tarde querida! Ãããã, onde fica o lugar para “distrocá”? – Perguntou Agente Soa.
— “Distrocá”? Ah sim, fica ali ao lado do caixa. Será um prazer atender a vocês com a nova peça, basta dar entrada no setor e voltar aqui comigo.
Agente Sua chegando próximo ao balcão indicado, começava a entender toda a confusão, mesmo sem aceitar que tenha chegado a este ponto.
— Aqui ó Agente Sua, toda loja tem um lugar assim, ãããã, é obrigatório, é normal.
— Entendi. Agente Soa, por favor leia a plaquinha indicativa ali no balcão.
— “Trocas e devoluções”. Normal. O que tem de errado?
— Com a loja, o balcão, a sinalização e o ato, nada Agente Soa, está errado sim e posso dizer que também está errada e tosca a tal palavra “distrocá”. Podemos raciocinar um pouco? Supondo que eu comprei uma joia nesta loja, dei de presente a ti e como não nos conhecemos a ponto de eu saber tuas preferências, vou falar a frase clichê: “se não gostou, pode…”?
— Não pode! Agente Sua tentando uma pegadinha heim? Que feio! Não pode dar presentes, falamos ainda hoje sobre presentes da agência. Não foi dessa vez – gargalhando – Achou que eu não ia perceber né?
— Agente Soa, pedi para completar o raciocínio, não temos intimidade para que eu faça pegadinhas ou perca tempo com piadas sem graça. Por favor, faça um esforço e me diga, é comum entregar um presente e falar a frase: “se não gostou, pode…”?
— “distrocá!”. Certo?
— Agente Soa está errado. Veja a plaquinha, leia novamente, diz: “trocas”. É comum nas lojas o lugar para “trocas”. Isso significa que ao receber algo que não agradou, não serviu ou está com defeito, podemos devolver ou TROCAR.
— Isso, “distrocá” é a mesma coisa.
— Agente Soa, é de doer nos ouvidos. Mas, eu acabo de perceber a preocupação da nossa agência. Vamos raciocinar novamente. Supondo que recebestes alguma coisa e queira trocar, não importa o motivo. Será feita uma TROCA. Está Certo?
— Sim Agente Sua, está certo. É uma troca de algo que recebi e não gostei, por outra coisa que eu goste.
— Perfeito, troca. Entregar uma coisa e receber outra em troca. Agora me diz, por acaso a loja tem um local escrito “distrocas e devoluções”?
— Não Agente Sua, não mesmo.
— Agente Soa, está errado e ponto. Podemos admitir a falta da polidez na fala de quem não coloca o “r” ao final das palavras, é horrível, mas, podemos tolerar. A nossa questão é que não houve uma troca anterior para que seja desfeita, considerando que “distrocá” seria o desfazer da troca, como uma sequência, onde já troquei e por algum motivo quero destrocar.
— Ual! Nunca pensei nisso. Show! Muito bom! Entendi tudo! E, ãããã, o que fazemos agora?
— Cumprimos apenas uma parte da missão Agente Soa. Precisamos identificar como surgiu essa palavra “distrocá” e porque está sendo falada por pessoas consideradas de nível superior.
— Mas isso é como procurar “agúia” em um “paiêro”, como dizia minha avó.
— “Agúia”, “Paiêro”. Mais uma vez sem querer, acredito que tu tens uma boa dica de onde entender a nossa próxima etapa. Onde é a cidade que tua avó morava?
— É longe. Uns duzentos quilômetros daqui. Não vou lá faz muito tempo, não tem muito o que fazer, continua cidade pequena e só tem gente antiga. Por que a pergunta sobre minha avó?
— Agente Soa, a pergunta foi sobre a cidade. Podemos raciocinar outra vez?
— Vamos! Gostei disso, vamos sim. Ãããã, como?
— Deixa eu te ajudar. Se a tua avó falava “paiêro” ao invés de palheiro, pode ser que “distrocá” tenha surgido do mesmo jeito.
— Não entendi. “Distrocá” o “paiêro”? Por quê? — Esqueça Agente Soa, esqueça. Tenho uma sugestão para avançar em nossa missão. Vá até a cidade da tua avó, ouça e converse com o máximo de pessoas que conseguir, procure alguma que fale trocar e não “distrocá”. Farei algo parecido por aqui, saindo de onde estamos em sentido a cidade da tua avó. Vai chegar um ponto em que vamos nos encontrar na estrada. Teremos uma boa base de pesquisa para nossas conclusões.
E assim a dupla de agentes foi realizar uma viagem para observação e pesquisa. Após três dias, Agente Sua, mesmo sem correr, passou por algumas cidades em um trecho de cento e cinquenta quilômetros. Sempre tentando manter contato com Agente Soa, que parecia não estar avançando conforme o desejado, ouviu algumas pessoas pelo caminho e estava se aproximando de uma conclusão. Chegando a um ponto seguro e adequado para uma conversa, feito o contato, encontraram-se.
— Agente Soa, mais baixo por favor, não é necessário gritar, estamos em um local público.
— Sim, sim, Agente Sua, olha como minha roupa está encharcada, parece que estou derretendo. Odeio o calor. Ainda bem que estamos na sombra! Ufa.
— Agente Soa, qual o significado das letras no teu chapéu?
— SSPP! Sorvete, Salsicha, Pão e “Paiêro”! Comprei na loja da minha tia! Não é uma maravilha? O nome foi minha avó que deu, quando a loja era dela. Essa véia era esperta! Copiou dos estrangeiros, tinha sigla para tudo! Tinha a PIDA, Polícia Interna da Área. Também o BAO, Boteco Antenor Otto. Minha avó foi no embalo e deu o nome da loja assim.
— Muito bom. Excelente. Entendi. E sobre a pesquisa?
— Sim, sei, foi. É… ãããã… Não lembro exatamente. É possível refrescar minha memória? Sabe como é, muitas tarefas, ãããã, a cabeça ó, uma loucura, correria total. Pesquisa?
— Agente Soa, era a tua parte da missão. Encontrar pessoas falando trocar ao invés de “distrocá”. — Ah sim, não tem. Por aqui todo mundo fala “distrocá”, não tem nenhuma que fale diferente. Falando nisso, comprei um chapéu pra ti também, olha só que maravilha! Claro, se não gostar, pode “distrocá”, é só me falar!
Relatório da missão:
“Faço uso deste relatório, para registrar que Agente Soa faz doer os meus ouvidos. Aceito sugestões de convivência, para melhorar o resultado das próximas missões. Em seguida, informo que a conclusão sobre o que é a palavra ‘distrocá’, também pode ser considerada uma dor aos ouvidos.
Trata-se de uma falha de raciocínio externada através da linguagem falada. Quando estimuladas, supondo situações cotidianas, identificamos que as pessoas dizem entender que trocar é o correto e que ‘distrocá’ não faz sentido, é tolice. Porém, minutos depois, ao surgir uma situação relacionada a realizar uma troca, as mesmas pessoas acabam repetindo a maldita palavra ‘distrocá’.
A origem desta falha, é de impossível identificação. Conseguimos uma evidência que pode ajudar a explicar, apesar de a fonte ser Agente Soa. Acreditamos que a origem de ‘distrocá’ tenha muita proximidade com ‘paiêro’. Agente Soa, muito alto como de costume, usou um ditado popular em que ao invés de falar a palavra correta palheiro, usou a forma que a lembrança instantânea lhe trouxe e falou ‘paiêro’. Questionado por mim, justificou-se indicando que aprendeu a falar assim, ouvindo a avó. Por relação causal, podemos considerar que ‘distrocá’ tem origem na linguagem de pessoas pejorativamente chamadas de caipiras. Por contato, pessoas dos mais diversos lugares e dos mais diversos níveis, repetem os caipiras, sem perceber uso da mesma linguagem.
Faço neste relatório, a confirmação de que é uma falha de raciocínio, combinada a uma repetição de linguagem não formal, que mesmo sendo exaustivamente corrigida, permanece indicando a deselegância, o desleixo e a forma rebelde de contestar as normas ou regras, quebrando regras simples através da fala. Seja na linguagem ou em outras ações, não é o forte da nossa gente respeitar os professores, que fazem de tudo para ajudar na evolução. Percebe-se que pessoas neste momento falando ‘distrocá’, seguem a cultura tosca de absorver palavras alteradas em sua pronúncia original, formal e correta, demonstrando indisciplina e desrespeito. De nada serve a dedicação de professores e professoras, quando o respeito não é característica dominante em um povo. Não respeitar uma regra simples, indica que regras mais complexas serão também desrespeitadas.
Sem mais sobre a missão, reafirmo que Agente Soa me faz doer os ouvidos.”