A Pobreza Deles

           Quem mora ou já morou em qualquer cidade entre Curitiba e Porto Alegre, certamente ouviu ou falou uma frase famosa: “no Nordeste saindo das primeiras ruas depois da praia, é uma miséria, uma pobreza de dar dó”. Esta frase é símbolo indiscutível de tolice e traz com ela importantes sinais sobre quem a repete. Fica escancarado que a pessoa tem limitações de percepção da realidade a sua volta, pratica o preconceito sem disfarce e sem vergonha e por obviedade, demonstra que não enxerga o próprio umbigo. Quem tem o mínimo de pensamento crítico, vai colocar na categoria tolice grave a não superação desta bobagem e terá que deixar de lado a pena que sentiu ao ouvir. Há que ter sinceridade para colocar a pessoa no nível que ela merece estar, com algo que comprova o pertencimento a um grupo que atrasa a continuidade da evolução da espécie humana, o grupo dos tolos e tolas.

           Esta grosseira falha de percepção, pode ser relacionada com uma tolice que parece ter raízes tão profundas, a ponto não sabermos ainda um jeito de arrancá-las e cessar o crescimento. Trata-se da pessoa que mal conhece o segundo quarteirão ao redor da sua moradia ou trabalho, mas, acredita que pode falar com profundidade do que está há centenas de quilômetros dali, com base em algo que lhe contaram em rodas de conversas, onde o besteirol não tem limites. Este tipo de falha na inteligência humana, ao repetir frases sem atualizar as informações e sem colocar em teste a validade do que está sendo dito, pode levar a pessoa a persistir no erro até seu último respiro. No momento presente em que escrevo este texto, é incalculável o número de pessoas que fixaram a imagem de um tanque de guerra sendo parado por uma pessoa na China, travando seu pensamento e percepção em uma única visão tosca, que é completada com imagem também impossível de ser apagada destas mentes, onde aquele país é feito de pessoas oprimidas, escravizadas com péssimas condições de trabalho, vivendo na mais absoluta miséria. A percepção fica travada neste ponto e impede a atualização, bloqueia o que acontece hoje e mantém a tolice de ficar repetindo algo que foi superado.

           Em outro grupo de pessoas, vinculados a frase em questão, está uma diferente falha de percepção que também aparenta ser irreparável. Pessoas que viajam com frequência, a lazer e a trabalho, algumas acumulando a experiência de milhares de quilômetros percorridos, mas, não conseguem comparar em mesmo nível, a pobreza da sua vizinhança, com a dos locais distantes por onde já estiveram. Parece tolice demais lembrar desta falha e escrever em uma reflexão como esta, mas, a perpetuação dela é o que confirma a importância de repetir. Há esperança de que alguém ao ler, caso esteja sob efeito dela, possa superar esta falha, como quem despertou, acordou.

           Entender e acreditar que mesmo com o acesso facilitado a informação, ainda exista quem alimente tolices como a frase citada no início e alvo deste texto, está mais difícil. Não é a única, nem será a que mais escancara as limitações na formação da percepção nas pessoas vivendo agora em idade considerada adulta no Brasil. Por um longo período, entre as primeiras transmissões em massa e os primeiros sinais de substituição por redes sociais, acreditou-se que o principal fator de emburrecimento era a TV, mais especificamente, o excesso de tempo dedicado a bobagens transmitidas nas telas. Isso considerando que a TV início em 1950 e declínio acentuado em 2020. Desde então, há sinais de que a troca da tv pela internet, não tenha resolvido a falha no pensamento crítico. Ao contrário, pode ter agravado, aumentando o tempo sequestrado com bobagens que atualmente é maior, em parte, pela facilidade em acessar e em outra parte, a danosa sofisticação do conteúdo chamado de entretenimento. Os sinais empíricos apontam para mais tempo perdido e conteúdos muito mais chamativos, viciantes e infelizmente emburrecedores.

           Convido quem estiver lendo este texto, a fazer um exercício que jamais será feito por alguém que esteja neste momento vendo um macaco pentear um gato ou apostando dinheiro em jogos feitos para tirar dinheiro de trouxas. Responda depois de saber os números conhecidos e registrados oficialmente: qual a diferença entre a pobreza de 43.000 pessoas que vivem nas favelas de Florianópolis (IBGE, dados públicos de 2022) e a pobreza nas capitais nordestinas? Não vale responder sobre a cor das pessoas em cada um dos lugares, nem sobre as “perspectivas de trabalho e renda”, porque isso quando mencionado, escancara também a tolice de quem diz.

           Da fala burra em que o Nordeste é pobre porque elege políticos corruptos (no sul o alvo tem nome e é declarado continuamente), passando pela limitação de inteligência que não permite perceber a pobreza a dois ou três quilômetros da própria casa, chegando na falha de inteligência que fixa imagens e frases do passado com realidades superadas ou extintas, seguindo com essa falha de percepção, continuará existindo pessoas tolas, com o pior cenário possível: pessoas assim enganadas. Ao considerar que isso seja um problema pequeno, a chamada elite intelectual, que são aquelas pessoas com capacidade comprovada de usar o pensamento crítico, esquece do fator multiplicação. Como quem vê uma formiga no jardim e não percebe que ela pertence a um formigueiro e que pode botar um ovo por dia. A multiplicação das formigas no jardim, será natural.