A troca de mãos que carregam o piano, muda pouca coisa, continuará sendo mãos carregando um piano. Se não está bom, será necessária outra fonte de força e movimento, um guindaste por exemplo. Continuando ruim, pode ser que o problema todo seja o piano.
Estamos em um momento da trajetória humana, em que muitas coisas tidas como sagradas, no sentido da certeza de que estão corretas, entram em choque com a realidade produzida por elas. O dinheiro e a forma como nos tornamos dependentes do fluxo que ele tem, o acúmulo de riquezas, o parlamento, o sistema de freios e contrapesos aos poderes do estado, o território e o comando dos estados e nações. São incontáveis os escritos e falas colocando em dúvida o que sabíamos, acreditávamos e defendíamos como indiscutíveis, insubstituíveis. Observe que não há proposições com apoio popular, que tenham em suas bases a mudança da lógica no que está sendo questionado. Na quase totalidade das proposições, troca-se apenas de mãos, continua a dificuldade no carregamento do piano.
Uma destas certezas questionadas, que afeta a maioria e talvez todas as pessoas, é o trabalho. De um lado a busca por melhores condições, algumas vezes simplesmente humanizando o que está distorcido, a busca de algum agradinho que possa compensar todo o sacrifício. Do outro, a velha conversinha de que não tem quem queira trabalhar ou não tem pessoas qualificadas. Aos que desejam melhorar as condições de trabalho, é dado uma resposta rápida, do tipo apagando incêndio. Aos da conversinha mole da falta de empregados, a resposta é mais simples e indigesta: tem sim, mas, tem que pagar.
Esta relação de conflitos entre lados com interesses tão distintos, permanecerá eternamente, enquanto a lógica inicial for: o teu trabalho gera ganho para mim. Não adiantará repetir frases e raciocínios contestando essa lógica ou tentando provar que os dois lados estão ganhando. Pior do que isso, somente se teu pensamento for para a bobagem comum da falsa proporção criada com algo parecido a: os proprietários têm todos os custos, não ganham cem por cento. É falso e cruel este pensamento, por desconsiderar que o ganho para cobrir os tais custos do patrão, é desproporcional ao ganho de quem trabalha para ele, que também tem custos para realizar este trabalho. Aqui entra a primeira analogia com o carregamento do piano, por tudo que é proposto direcionar a um único caminho: quem trabalha sonhar em ser patrão. Nada muda, porque ao realizar, vai dar continuidade a lógica inicial (o teu trabalho gera ganho para mim).
E se no início da conversa, mudássemos para o nosso trabalho gera ganho para nós? Ao ler isso, se veio ao teu pensamento o cooperativismo já existente, lamento. O que responde à pergunta é outra forma de pensar o sentido do trabalho, é fazer exercício de projeções que sejam diferentes da realidade em que estamos agora. Comece pela percepção mais básica, analise o ciclo em que está inserida uma necessidade vital, a alimentação. Uma simples pergunta, tem resposta preocupante: quantos de nós, hoje, sobreviveriam caso fosse necessário plantar e preparar a própria comida? Seja qual for a tua soma de sobreviventes, lembre-se que mesmo sabendo plantar, teria que ter onde plantar e o que comer enquanto a natureza cuida de gerar bons frutos. Hoje, o trabalho de quem planta (sentido de produz comida) gera alimento para quem paga para comer. Plante, é muito diferente de vamos plantar, assim como faça para mim que eu pago, é diferente de façamos juntos sem necessidade de pagamento.
O sonho de prosperar e ser proprietário ao invés de trabalhador, bagunçou a existência da coletividade na vida do ser humano. Este sonho tem relação com o sedutor poder. Já temos o tempo necessário para entender que a lógica atual do trabalho, nos fez infelizes, vulneráveis, cruéis e desumanizados. Quando temos um empregado que ao perceber a injusta divisão entre o ganho do proprietário e o dele, rompe a relação e passa fazer o mesmo trabalho no formato que aprendeu a chamar de “por conta própria”, temos a tendência de acreditar que este é o melhor ou o único caminho. Até o momento em que ouvimos do antes empregado, a famosa frase: “serviço tem de sobra, o que falta é gente com vontade de trabalhar”. A premissa “faça para mim que eu pago”, parecia ter sido rompida neste caso, mas, na prática não foi. Antes o trabalho do empregado gerava ganho ao proprietário – esqueça a ideia de salário como ganho para quem trabalha – e incomodava. Agora, desejar ter empregados para repetir o que fazia o proprietário, não incomoda mais.
Mesmo parecendo bizarrice projetar o resultado de dar outro sentido ao trabalho, somos todos os dias convidados a fazer. É um convite para uma festa estanha e com gente esquisita, a música parece louca e a comida exótica, o lugar parece desconfortável e a hora imprópria. Mas, ao entrar a coisa toda muda, porque a festa é de livre acesso a todas as pessoas e muito melhor do que as que conhecíamos.
Tolice é acreditar que a relação que temos com o trabalho é justa e correta. Mais tolice ainda é acreditar (e aceitar) as bobagens que são usadas para justificar a eternização das figuras dos trabalhadores e dos proprietários. Esta é uma verdadeira relação entre poder e obediência obrigatória. É falso que o investimento justifica o ganho com o trabalho dos outros. Tão falso quanto usar “benefícios” do tipo vale ou auxílio transporte, vale ou auxílio alimentação, plano de saúde com coparticipação, como compensações para equalizar o ganho de quem trabalha com o dos proprietários. Falso que todos cooperamos e dividimos o resultado. Falso também que é justo existir os donos do capital, é mérito deles. São palavras, conceitos e premissas que se tornaram verdadeiras tolices, a partir do momento em que se deu significados distorcidos a eles, propositalmente. Quando a pessoa não sabe o que é determinada coisa, qualquer que seja o dito que significa, será entendido como verdade. Salário vira renda, carga horária vira compromisso e cumprir vira sinal de maturidade, responsabilidade. A lista é grande, talvez proporcional ao tamanho das distorções dos significados.
O sentido de trabalho e a forma como vamos usá-lo para o verdadeiro ganho coletivo, a troca de para eu por para nós (de verdade), já tem um começo de conversa. E mesmo que o resultado seja ainda tímido, sufocado pelas falácias e fantasias do que aceitamos como certo, vai aumentar o tom, a medida em que a desigualdade provocada pelo sistema atual, atinja níveis ainda mais insuportáveis que os de hoje. Tolice é aplaudir algo como jornada reduzida ou brigar por liberais versus conservadores. Continuará sendo a troca de mãos para carregar o piano. Não precisamos de mãos diferentes carregar o piano que nenhuma delas sabe tocá-lo. Será justo quando o nosso trabalho permitir que tenhamos pianistas de sobra e felizes.